quarta-feira, 26 de março de 2014

O Portador da Fé.


  A esperança é a última que morre.

  De geração pra geração, essa é uma frase que se perpetua, e não poderia ser diferente na família de Mpanzu. Desde os tempos da juventude dos seus parentes mais velhos (pelo menos aqueles que sobreviveram e conseguiram a façanha de atingir a idade avançada), sua região é assolada pelas mais diversas guerras. Grande parte das pessoas que conhecera na infância já não respira entre nós, que Deus, Alá, ou o Diabo que os tenham.

  Mas Mpanzu prevaleceu, e cresceu. Em sua família e sua tribo, era considerado um ser iluminado, trazendo alento a todas as pobres almas que o cercava. Era forte, inteligente e, acima de tudo, uma pessoa bondosa. Em tempos difíceis ele se tornou uma jóia cada vez mais rara: bastava um abraço, uma palavra, um olhar nas confiantes feições de Mpanzu para ter certeza de que tudo iria melhorar.

  Um certo dia, uma visão estranha foi oferecida a todos os moradores daquela terra maldita. Mesmo naqueles tempos em que armas eram abundantes, caças sobrevoavam diariamente a região, e poucos repórteres atrevidos chegavam, em busca de fama ou morte prematura, não era todo dia que se via um helicóptero aterrissando e atraindo atenção de todos.

  Dois homens e uma mulher trajados de forma elegante saem do veículo. A tonalidade pálida de suas peles naquela terra abraçada pelo Sol escaldante tornava a cena ainda mais incoerente, e tudo só iria piorar.

  Quase que imediatamente, os conflitos armados se tornaram mais intensos, com mortes mais sangrentas. Em uma semana, ninguém mais tinha notícias de Mpanzu.

  - Acorda, filho da puta.

  Tapa na cara.

  - Vou te ajudar.

  Água gelada no rosto. Teve impressão que iria se afogar. Mpanzu recobrava a consciência lentamente, como se tivesse dormido por uma vida inteira. Estava amarrado, nu, a uma espécie de banco de concreto. Parecia um armazém, parecia um...

  Soco na cara.

  - Bem vindo ao último dia de sua vida, garoto.

  Ver aquele homem pálido falando sua língua materna lhe passava quase uma sensação de que foi abduzido.

  - Quem são vocês? Por que me prenderam, nunca fiz nada pra ning...

  Um chute acertou em cheio seu tornozelo, e a sensação imediata de dor insuportável o fez esquecer por um segundo do rosto latejando.

  O segundo homem aponta uma pistola para entre seus olhos.

  - Me desculpe, garoto.

  Mpanzu, assustado, só consegue fitar os olhos de seu futuro algoz, que cai de joelhos no chão, chorando e implorando por perdão. O outro homem faz o mesmo, em seguida.

  - Vocês são realmente muito frouxos - diz a mulher pálida e de olhos avermelhados, saindo das sombras - Precisam de um pequeno incentivo.

  Ela toca os ombros dos comparsas que, como hipnose, se levantam e partem pra cima do pobre raptado. Poucos minutos antes de perder a consciência, ele tentou conversar, mas foi impedido pela mandíbula quebrada. "Homens raivosos", pensou, "mas tudo vai ficar bem, eles vão entender, vou sobreviv...", e foi interrompido pelo som de seu próprio pescoço se quebrando.

  - Agora, levem o corpo.

  Sob as ordens da mulher, o corpo de Mpanzu foi carregado como um animal abatido por seus dois raptores.

  Nesse dia, o portador da fé foi o primeiro a morrer, levando consigo a esperança.

segunda-feira, 24 de março de 2014

O laço e o fim.

  Uma faísca. Não houve explosão, gritos, feridos. Não passou no noticiário. Não atraiu sequer a atenção de quem estava ali, ao lado.

  Mas bastou um estalo, uma epifania, e tudo aquilo em que acreditara se mostrou roto, tal qual grande parte das coisas em seu passado.

   Pudera, ele nunca pôde ser considerado um cara de grande sorte. Caralho, nem uma mínima sorte, poderíamos dizer.

  Ele estava ali, com uma carta em sua mesa direcionada a ninguém, e uma corda pendurada com um laço que selaria seu destino. Estava decidido, e ninguém o convenceria do contrário. Essa merda acaba hoje.

  Uma faísca, e toda a sua vida não valia mais a pena.

  Com sorte, o encontrariam semanas mais tarde, graças a uma insuportável quantidade de moscas e um cheiro de carne quase tão podre e suja quanto sua consciência.

  Acabaria ali, agora. Merda, suas pernas tremem. Mas essa seria a única coisa terminada em sua vida, sua própria vida. Pela primeira vez, ele não estava disposto a vacilar. Pela primeira vez, seguiria até o fim de uma decisão.

  Agora, estava olhando de cima de sua cadeira o que ele imaginava ser o topo do mundo. Pensava em como, sem nenhum remorso, cagaria na cabeça de cada pobre criatura que ali estava. Riu ao imaginar. Estava pronto pra pular.

  Porém, no momento crucial, no clímax do fim, nada aconteceu. Pelo menos não com o seu pescoço. Nem com sua corda. Ele estava ali, parado no ar, levitando como um truque de mágica barato e antiquado.

  Lágrimas escorrem em seu rosto, dada a situação impossível que presenciava. Droga, será que ele estava errado? Será que deveria viver? Tudo levava a crer que sim.

  A resposta de algumas perguntas às vezes se revelam a um preço alto demais, e é isso que nosso amigo percebe ao pousar no chão, com violência. Seu laço estava solto, como uma fantasia mal feita de halloween, e houve um alívio súbito, que durou pouco.

  Sentiu uma viscosidade fria subindo por sua perna, e notou que estava sendo tragado pela sua própria sombra, que naquele momento já se apoderava de seu tronco, rastejando por seus braços e avançando em direção à cabeça. Não teria tempo de gritar: aquilo se apossou de sua boca, e o tragou para o chão.

  Houve uma ironia poética quando ele desapareceu: passou a vida sem terminar suas coisas, e sua vida em si nunca terminaria. Sem respostas de como ou onde ele estaria. Mas, de qualquer forma, nunca ninguém perguntou.