domingo, 25 de novembro de 2012

Desejos.



  Tudo começou do nada. Religiosos diriam que era uma dádiva de Deus, cientistas diriam que era o próximo passo na evolução, ou um evento improvável nas milhões de improbabilidades caóticas do universo. Mas estava acontecendo: os desejos das pessoas se tornavam realidade.

  O dia começara com coisas simples: um acordou sem querer trabalhar, e viu que era domingo. 

  Outro, só queria que o feijão em casa não tivesse acabado, olhou em sua cozinha, e lá estava, o saco de 1 Kg fechado, que nem se lembrava de ter comprado. O mundo finalmente era feliz: casais reatando, empregados com salários aumentados, doenças curadas. Tantos haviam ganhado na loteria que o prêmio era de centavos, literalmente, mas estavam todos satisfeitos.

  Infelizmente, não podemos controlar nossos impulsos, e nossos desejos logo seriam voltados contra nós. E isso começou com um pisão no pé. Uma pessoa pisou no pé de outra, em plena rua movimentada e, sem pensar, em um momento de ódio, esta desejou que a outra sofresse uma dor inigualável. O grito de agonia pôde ser ouvido por todos, enquanto seu crânio inchava e seu estômago se dilacerava. Quem estava lá, não aguentou: desejou não ver nem ouvir aquela cena, para serem poupados de tamanha brutalidade. Esses, tiveram mais azar. Uma multidão com olhos e ouvidos sangrando se transformou cada vez mais em uma cena que guerra nenhuma nunca poderia alcançar.

  Pior ainda aos que sobreviveram à primeira onda de devastação. Aos desejaram que o tempo voltasse antes disso, restou rever novamente o começo da devastação, enquanto os mais sortudos só desejaram que aquilo parasse. Esses, morreram tranquilamente.

  Os poucos que restaram na Terra passaram a temer o que menos podiam: seus próprios pensamentos. As pessoas mais bondosas queriam que o sofrimento do mundo acabasse, colaborando com a morte de mais milhares. Arrependidos, mas sem coragem de desejar sua morte, os últimos morreram de fome. Os mais fracos, quem diria, duraram a ponto de notar o quão sua própria natureza é cruel. Claro, isso antes de roerem seus próprios corpos enquanto temiam pensar em qualquer coisa.

  E você, o que deseja neste instante?

  Bons sonhos...

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Reencontro.



  Rafael mudou, e está ajoelhado. Há alguns anos, era um conhecido empresário do ramo de eventos, com uma conta bancária invejável e propriedades espalhadas pelo mundo. Mas essa nunca havia sido sua verdadeira riqueza: encontrara também Sara, o grande amor de sua vida. Ah, que rapaz de sorte...

  Mais que um homem sortudo, Rafael era intenso. Praticava esportes radicais, viajava ao redor do mundo, comia e bebia do bom e do melhor. Havia se casado há um ano com Sara, e todos os dias pareciam com o primeiro de namoro, porém, algo tão certo quanto o primeiro dia, é que cedo ou tarde viria o último. E não poderia ser tão trágico.

  O casal estava em São Paulo, sua cidade natal, e estava voltando da sorveteria onde se conheceram. Tudo de que Rafael se lembra é de seu carro parando no sinal vermelho, uma batida em sua traseira e um caminhão em alta velocidade no cruzamento.

  Acordou no hospital e, ao abrir os olhos, logo perguntou por Sara. Para seu alívio, disseram que Sara estava bem. Claro que poderíamos considerar isso verdade, se entendermos por “estar bem”, que Sara estava enterrada no Cemitério do Morumbi desde semana passada.
  
  Rafael só descobriu isso ao receber alta, e foi o momento em que ele quebrou. Tudo destruído, e nada mais fazia sentido.  Começou a frequentar os piores lugares, para se entorpecer com as piores drogas e tipos de divertimento mais baratos. Em sua ânsia de retomar contato com sua amada, ele descobriu a magia. Difícil de acreditar, não?  Mas a magia sempre foi uma ciência que ainda não foi “entendida” e, por este motivo, exige um alto preço.

  Como nenhum preço era alto demais para Rafael, logo ele apostou tudo o que possuía neste objetivo: seus bens, sua saúde, sua sanidade, e sua humanidade. Começou visitando o Egito, investigando as crenças sobre o retorno dos mortos, não demorou para estar no México comemorando “El dia de los muertos”, conheceu rituais de “zumbificação” advindas do vudu africano. E foi mais além. Não foi barato, mas conseguiu livros com rituais que sobreviveram à inquisição, e menos barato ainda subornar traficantes de crianças. Sim, neste momento estava perdendo sua humanidade, a linha que distinguia o certo e o errado em sua alma se tornara apenas um borrão, manchado por todas as lágrimas e sangue de bebês sacrificados, obscurecido pela dor de suas auto-mutilações.

    E agora, Rafael está ajoelhado. Estava tudo pronto, e a parte mais fácil foi invadir o cemitério onde estava seu amor. Mais barato ainda foi pagar alguns pobres homens para desenterrar seus ossos, e mal sabiam eles que também seriam envolvidos nesta loucura. Loucura? Talvez não, nosso protagonista sabia o que estava fazendo, e foram anos de preparação para aquele momento. Assim que os dois homens desenterraram os restos mortais de Sara, bastou afundar seus crânios com uma pá, enquanto descansavam de seu ofício.

  Estava tudo ali, ossos, carne desforme, sangue, bálsamo, ervas e símbolos. Bastaria sua voz e o seu juramento de amor eterno para Sara se levantar. E ali estava ele, ajoelhado, gritando por seu nome.

  Nada aconteceu.

  Mas Rafael não desiste, talvez só precise de mais carne, e partirá em sua nova jornada em busca de sangue...

sábado, 17 de novembro de 2012

A sensitiva.



  Ela tinha medo de espíritos. Tinha sempre a sensação de estar sendo vigiada, seguida, como se, a qualquer momento, pudesse ser atacada. Sua família tinha um grande histórico de sensitivos, e já havia visto sua avó conversando com seu finado avô.

  Mas ela, ah, ela não conversava. O medo sempre fora maior que a vontade de um entendimento. E quando saía de casa, tudo piorava: sentia milhares de olhos sobre ela, como se uma espécie bizarra de holofote atraísse todos aqueles olhares sem olhos e carícias etéreas.

  Certo dia, o medo venceu. Nossa pobre garota estava ali, encolhida ao portão da sua casa, chorando copiosamente. Foi quando a mão amiga de um senhor, seu vizinho de longa data, tocou em seu ombro. Era um homem de 60 anos, com um rosto rosado e óculos redondos. Estava um pouco acima do peso, e caminhava de uma forma engraçada. Ofereceu sua mão amiga, abriu a porta de sua casa e ofereceu um chá, para acalmar o ânimo, e ela dormiu em seguida.

  Acordou em uma fria maca. Mas, o que havia acontecido? Era algo no chá? Ela estava em um pesadelo? Ou havia acordado de um? Difícil saber, até que o bom senhor aparece na sala, com um avental e máscara e, sem ao menos dizer uma palavra, começa a serrar o pé da garota. Em meio aos delírios que a dor das múltiplas mutilações traziam, ela imaginara se era realmente por espíritos que se sentia desejada e vigiada. Enquanto isso, percebia inúmeras presenças assistindo a cena, com seus olhares de órbitas vazias.

   Nos minutos finais em que sentia sua vida se esvaindo, ela imaginou se iria se juntar aos espíritos que passou  o tempo todo temendo, e aprendeu que devia ter medo da insanidade e maldade dos vivos, ao invés do frio na espinha trazido pelos mortos.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Encurralado.



   Não sei há quanto tempo estão aqui. Parecem séculos. Todos em minha casa estão mortos. A única lembrança que me resta deles é o grito de agonia antes de cada último suspiro. Ironicamente, a escuridão é tudo o que me protege, mas sei que não será por muito tempo. Batem em minha porta, com mais e mais força, até que esta se quebra. Vejo luzes, devem ser lanternas. Corro para o quarto, com uma faca na mão. Ouço passos, percebo que são mais de dois. Talvez, devesse ataca-los também, mas sei que não tenho chances. Então, tudo em minha cabeça faz sentido: não estão todos mortos em minha casa, falta um. Aponto a faca ensanguentada para meu peito e, com toda a minha força, a faço atravessar por entre minhas costelas. Não sabia que doía tanto, e já não consigo respirar. Enquanto minha visão escurece, vejo os policiais entrando em meu quarto.